Nosso Castelo de Cartas

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sábado, 20 de agosto de 2016

Reescrevendo (Ago/2011) - O Garoto Ancião

Dezessete anos, longos cabelos pretos e olhos castanhos.
Jovem empolgado, aventureiro, queria mudar o mundo, tinha vontade de fazer tudo. Nenhuma montanha era alta demais que ele não arriscasse escalar, nenhuma queda era grande demais que ele não conseguisse se levantar.
Curioso. Gabriel era muito curioso.
Gostava de música, jogos, filmes, esportes, aventuras e de ler.
Um dia, Gabriel encontrou um livro numa caixa velha em sua casa, naquele cômodo que tem em todas as casas, aquele lugar onde há um monte de coisa encaixotada que ninguém usa, mas também não joga fora.
Na primeira página do livro, dizia: "Este livro é mágico".
De certa forma, todos são.
E na segunda página, dizia: "Primeiro capítulo: Hoje".
O protagonista do livro era um jovem de dezessete anos, longos cabelos pretos e olhos castanhos. Jovem empolgado, aventureiro, queria mudar o mundo, tinha vontade de fazer tudo. Nenhuma montanha era alta demais que ele não arriscasse escalar, nenhuma queda era grande demais que ele não conseguisse se levantar. Curioso.
O livro era uma biografia muito envolvente. Gabriel, sem parar, leu toda a vida do protagonista, que foi contada desde os seus dezessete anos até os seus cinquenta anos.
A última linha dizia: “Na famosa crise de meia idade, eis que ele fechou o livro, pois tinha a grande impressão de que já não havia mais nada para escrever”.
Gabriel achou o final idiota, fechou o livro e foi dormir.
Entretanto, ele nunca mais acordou.
Porque quem acordou naquela manhã não foi Gabriel, mas um cara de cinquenta anos.
Gabriel tinha envelhecido trinta e três anos em uma noite. Ele correu pro espelho e viu o quanto tinha mudado.
Dezessete anos, longos cabelos pretos e olhos castanhos. Nada de diferente.
Mentira.
Tudo era diferente.
Gabriel meio que levantou cambaleando e foi tomar café. Sua mãe lhe deu “bom dia” como se nada tivesse acontecido. Mas ele nem deu “bom dia” a ela, porque ele se sentia como se já tivesse dado um milhão de “bom dia” e mais um não faria diferença. Era a coisa mais estranha que já havia sentido, mas era tipo estar enjoado de dar “bom dia”.
Mas ele gostava de dar “bom dia”.
O café da manhã tinha leite com chocolate e pão com queijo. Ele adorava aquele café da manhã.
Mas hoje ele havia acordado como se já tivesse comido aquele café da manhã um milhão de vezes. Mal tocou na comida. Estava enjoado de pão com queijo.
E ao longo do dia ele percebeu que tudo estava igual. Tudo era repetido, era um filme já visto e ele tinha certeza absoluta de que já tinha feito tudo o que havia para fazer.
Nesses trinta e três anos, ele viu todos os filmes que queria ver, leu todos os livros que queria ler, escutou todas as músicas que queria escutar, conheceu todas as pessoas que queria conhecer, beijou todas as garotas que queria beijar. E, mesmo que ele visse outros filmes, escutasse outras músicas ou conhecesse outras pessoas, nada parecia se comparar com os últimos trinta e três anos que ele já havia vivido.
Era tudo sem graça.
"Era como se não houvesse mais nada pra escrever" – ele pensou.
E lembrou-se do livro, correu em casa e o pegou.
Na primeira página, dizia: "Este livro é mágico".
“Não pode ser...” – ele pensou.
Na segunda página, havia as seguintes palavras:
"Hoje acordei meio estranho, meio enjoado. Mas nem prestei atenção nisso, porque um grande amigo que eu não via há muito tempo me ligou, dizendo que estava na cidade”.
Tu ru ru ru, tu ru ru ru, tu ru ru ru ruuuu.
Era o celular de Gabriel.
- Alô?
- Alô. Quem é?
- Sou eu, cara! Quanto tempo! Não lembra mais de mim?
... (silêncio)
- Estou de passagem por aqui! Vamos nos encontrar hoje? Pode ser?
- Claro.
- Certo! Passo na sua casa mais tarde, então!
- Ok.
... (silêncio)
Eu não sei se o livro era mágico mesmo.
Mas Gabriel sabia, tinha certeza de que o livro era mágico. De que ele havia vivido trinta e três anos e agora tinha cinquenta, estava preso no corpo de um moleque de dezessete e não via mais graça na vida.
Ele saiu para dar uma volta, levou o livro. Gabriel morava numa metrópole. Ele pegou um elevador num dos prédios mais altos da cidade.
Foi para um lugar onde se podia acessar a cobertura do edifício (não era exatamente permitido, mas ele dava um jeitinho). Ele adorava ver o pôr-do-sol daquele lugar.
Gabriel deitou na cobertura do prédio e passou horas pensando na vida, no universo e em tudo mais e em qual era o sentido daquilo tudo.
"Era como se não houvesse mais nada pra escrever".
Realmente não havia mais nada? Tudo era tão absurdamente sem graça assim?
Ele só conseguia pensar que era.
Só faltava um fim para essa história.
Começou a chover.
Ele pegou o livro e foi pra beira do prédio. Olhou lá para baixo por uns minutos.
Carros, confusas cabeças: a correria das capitais.
Olhou pro livro, olhou para baixo, pro livro, para baixo.
Chuva forte.
Já era hora do fim.
Abriu o livro...
Dezessete anos, longos cabelos pretos e olhos castanhos. Jovem empolgado, aventureiro, queria mudar o mundo, tinha vontade de fazer tudo. Nenhuma montanha era alta demais que ele não arriscasse escalar, nenhuma queda era grande demais que ele não conseguisse se levantar. Curioso.
...
VUSH
É o som que faz o vento quando se caí de bem alto.
SPLAFT
É o som que se faz quando se atinge o chão molhado.
Tipo SPLASH + PAFT.
Quase caiu na cabeça de uma pessoa. Essa pessoa aleatória que não tinha nada a ver com a história tomou um puta susto.
Ele pulou.
Mas não para fora do prédio, pulou pro outro lado, de volta para dentro do edifício.
Agora, de costas pra beira do prédio, ele notou que começava o pôr-do-sol.
E assim que começou a admirá-lo, sentiu-se como se já houvesse visto o pôr-do-sol um milhão de vezes.
Mas não dá para enjoar do pôr-do-sol.
Deu um sorriso.
Ninguém quis pegar o livro que caiu lá embaixo, caiu na chuva mesmo.
Molhou, estragou.
Ainda bem. Acho que era um livro perigoso.


domingo, 14 de agosto de 2016

Crônicas de 2178 - Capítulo 3 (Parte 2/2)

                - Então é isso? Perguntei a Jen.
                - Sim. Então, quer dizer que você não vai morrer aqui e agora?
                - Não. Respondi.
                - E como você pode ter tanta certeza disso? – Jen me perguntou.
                - Você lembra quando visitamos o oráculo?
                - Sim.
                - Ele me contou como eu iria morrer. E não é assim.
                - E você acredita assim, tão cegamente nas palavras do oráculo?
                - Na verdade não. Mas sobre hoje, eu sei que ela está certa.
                - Que inveja de você. Ter toda essa certeza de que vai sair dessa vivo.
                - E você, Jen? Acha que hoje é o seu dia?
                - Quer saber mesmo?
                - Sim.
                - Alguma coisa, lá no fundo, me diz que sim.
                - Você está errada.
                - Acho que é a primeira vez que você me diz isso.
                - Bom, é difícil contra-argumentar fatos, a verdade é que na grande maioria das vezes você está certa mesmo. Mas hoje não, hoje você está errada.
                - E como você tem tanta certeza disso?
                - É simples, veja só, eu já expliquei pra você que eu não vou morrer aqui e agora, certo?
                - Certo.
                - Então, se eles entrarem com o objetivo de nos matar, eles vão matar nós dois. Se eles entrarem com o objetivo de nos capturar, eles vão capturar nós dois. Se eles entrarem e nós dois reagirmos, iremos morrer os dois, se não reagirmos, seja lá qual for o nosso destino, será o mesmo destino para os dois. Não há nenhum cenário possível no qual apenas você morra e eu continue vivo, você é esperta, e sabe disso. Então, se eu não vou morrer aqui hoje, você também não vai.
                - Sabe, Eks, hoje. – Ela sorriu. – Só hoje. Eu queria que você estivesse certo.
                - Estou sim, você vai ver.
                - Lente-scanner, ativar detecção de sala
                Resultado: um objeto encontrado.
                - Olha só Jen, tem alguma coisa aqui, talvez nós possamos usar isto e dar um jeito de sair daqui.
                Jen sorriu.
                - Eu já vi, vai lá olhar o que é. Você realmente achava que eu não tinha pensado nisso antes, Eks?
                Fui lá, o “objeto” encontrado que poderia nos ajudar a sair da sala, era um antigo xpod geração 21xx, famosos pela sua incrível durabilidade. É, ela já tinha feito a análise da sala sequer antes que eu percebesse, óbvio, Jen estava sempre um passo à frente.
                - Olha só! Isso vai salvar a nossa vida. Eu disse.
                - É mesmo, como?
- Não sei, mas vai salvar a nossa vida, você vai ver. Jen, não há mesmo nada que possamos fazer?
- Eu já analisei todas as situações possíveis, Eks, não, não há nada que possamos fazer afora esperar e rezar.
- Bom, disse um velho amigo meu uma vez, se um problema não tem solução, solucionado está.
Eu liguei o xpod, que ainda estava funcionando, eu diria que, por incrível que pareça ainda estava funcionando, mas as propagandas sobre a lendária durabilidade dele eram tão famosas, que nem me espantei com o fato de ele ainda funcionar perfeitamente. Mandei tocar a primeira música, fui na direção de Jen, coloquei a mão na cintura dela. 
                - O que você está fazendo? Ela perguntou.
                - Ora, se não tem nada que possamos fazer. A senhorita me daria a honra desta dança?
                Jen riu bastante.
                Dançamos.
                Por alguns pouquíssimos minutos, que pareceram passar tão incrivelmente rápido e simultaneamente, pararem o tempo por uma ínfima eternidade... não havia guerra, não haviam soldados, não haviam missões, nem problemas. Não havia nada, só eu, Jen, e a música.
                Tudo era perfeito. Por alguns segundos, ela sorriu, eu sorri, e nada mais importava, só nós dois. O mundo era aquela sala e aquele momento. Eu acho que, se eu pudesse escolher um minuto da minha vida no qual eu tivesse que passar revivendo ele para sempre, seria aquele momento.
                Eu levantava o braço, segurava na mão dela, ela girava. Dançávamos para um lado e para o outro, ela sorria. Eu trazia ela pra perto de mim, segurava ela pela cintura. Olhava nos olhos dela e me perdia na infinidade deles. Valsando perfeitamente, como profissionais.
                Mentira.
                Na verdade, estávamos incrivelmente desengonçados, tipo aquele casal bêbado de fim de festa, no cantinho, que nem sabe o que está fazendo.
                Mas éramos felizes.
                Por um segundo em meio a toda aquela guerra e confusão, nós fomos felizes. E é isso que conta. Apesar de todos os horrores que vivenciamos todos os dias. Ás vezes, por um segundo, dá pra ser feliz. A vida é exatamente isso, breves intervalos comerciais de felicidade, em meio a um turbilhão de atrocidades que te atropela todos os dias. Mas esses breves intervalos valem a pena.    
                Eu olhava nos olhos de Jen e queria muito dizer a ela o que eu pensava, como eu me sentia. Mas, como sempre, me faltou coragem. Eu podia me jogar na frente de um trem em movimento sem medo, mas contar a verdade a Jen, ia requerer mais coragem do que isso.
                O problema é quando a realidade te acerta na cara. Aí você lembra que aqueles breves segundos de felicidade, parecem uma mentira, em meio a todo o caos que te rodeia.
                BOOM.
                Aí a realidade explodiu na minha cara. Bem literalmente mesmo.
                Estilhaços da parede voaram pra todos os lados, mas à parte um corte leve ou outro, estávamos bem, pelo menos por enquanto.   
                Um por enquanto que não durou muito, não mesmo.
                Adentraram a sala, em segundos estávamos cercados, doze soldados com fuzis apontados em nossa direção, eu e Jen no meio. E agora? Seria essa mesmo a nossa última missão?
                O líder do esquadrão deu um passo à frente e ativou seu comunicador.
                - Comandante, os encontramos. Sim, um homem e uma mulher como previsto. Afirmativo. Entendido. Considere feito.
                Ele virou o rosto para o primeiro soldado a sua direita.
                - Precisamos do homem vivo, apaguem ele para levarmos, não quero nenhum tipo de surpresas no caminho.
                - Entendido. E ela?
                - Só precisamos dele.
                - Entendido.
                BANG
                Ouvi um tiro.
                Tudo ficou escuro.

                Acabou.