Nosso Castelo de Cartas

Nosso Castelo de Cartas

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Reescrevendo (Nov/2013) - O poeta sem coração

Disseram-me que os poetas escrevem
Aquilo que vem no coração
Mas um dia, rodando pelo mundo
Eu encontrei um poeta sem coração.
Eu perguntei a ele como escrevia
Afinal como poderia
Ser um poeta, sem coração

Ele disse eu não sou, eu fui
Um dia eu fui um poeta
Quando eu tinha um coração
Hoje já não sou mais

E o que aconteceu com o seu coração?
Foi arrancado de seu peito?

Se tivesse sido arrancado, eu teria percebido
Se tivesse sido roubado, eu teria notado.
Se tivesse sido destruído, eu teria sentido
Se tivesse sido machucado, eu teria visto.
Se tivesse sido guardado, eu saberia onde.
Mas ele sumiu
Sem que eu percebesse ele fugiu
Eu vi ele partindo e o deixei
E quando me dei conta, já era tarde
Ele já não estava mais aqui

E como é não ter um coração?
Sem um coração, é difícil sofrer.

E isso não é bom?
Não, não é.

E porque não?

Se você gosta da luz, é porque ela te salva das trevas
Se você gosta da beleza, é porque sabe o que é feio
Se você gosta é porque sabe o que é odiar.
Mas e se você de repente não pode mais sofrer?
Não pode mais sentir?
O que é a felicidade?
Eu esqueci.

E o que fará você sem um coração?

Eu pagarei a minha pena
Como um ser vazio de sentimentos
Exaltando a solidão
Mascarando a felicidade
Vivendo de ilusões

A realidade é cruel criança
O mundo faz seu coração partir
Ele leva embora suas esperanças
E esmaga seus sonhos

Para onde você vai?

Eu vou embora
Seguir meu rumo sem destino
Procurar um sentido sem sentido
E juntar-me a multidão
Eu fiquei velho e cansado
E já não há para onde ir

Você me escutou criança?
Sim.

Então está tudo bem.
Dentro das suas memórias
Eu viverei para sempre

Ser poeta é assim.
Não importa quantas vezes eu morra.
Palavras,
São imortais.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Mergulho e Queda

          Do alto do abismo o poeta admira a paisagem da solidão, as nuvens passam entre as suas mãos. Ele deita no chão frio e observa o céu azul, não há mais nada afora o mar escuro tantos metros abaixo. 
          O poeta levanta, sorri, e corre desesperadamente para a beira do abismo como se sua própria vida dependesse disso, ele pula, salta, se joga, se atira, se lança ao nada do horizonte como se não houvesse amanhã. Seus movimentos são perfeitos, mergulhador profissional, já pulou tantas vezes que sabe exatamente o que fazer, como pular, em que posição descer e como cair. Foi um salto perfeito. 
            E é aqui que você entende porque os poetas são mergulhadores. É o vento que corta seu rosto, a sensação de não ter chão sob seus pés, a liberdade de não ter absolutamente nada te segurando. 
        Ele segue com toda velocidade para frente, rosto em direção à água, mas é aí que mora o problema… todo pulo é um mistério… um salto de fé em direção ao desconhecido, mas às vezes, na verdade, na grande, esmagadora maioria das vezes, a aterrissagem é catastrófica. Os poetas vivem de mergulhos profundos, atirados ao infinito sem medo das consequências… é inevitável... sentir é seu vício, e todos que sentem demais entendem que se este é o mais belo dos dons, ao mesmo tempo também é a mais terrível de todas as maldições.
      Afinal, a liberdade do salto… o vento atravessando o rosto, sentir o peito palpitando a velocidades absurdas… Vale a queda?
            Porque a queda é hedionda, aterrorizante, impiedosa.
         O som que vem em seguinte é terrível. Mais uma vez, o poeta se atira com toda vontade em direção ao desconhecido… mas mergulhos profundos em superfícies rasas não são algo bonito de se ver. O poeta atinge a água com toda velocidade, a profundidade do chão? Dez centímetros. Serei honesto com vocês, de tantos saltos que deu na vida, ele nunca antes em toda a sua história havia atingido uma superfície tão rasa, fútil, egocêntrica.
       Foi arrasado, destruído, assolado, danificado, avariado, inutilizado, desfeito, desmanchado, demolido, derrotado, arruinado, desolado, desbaratado, aniquilado, destroçado, abatido, devastado. Incontáveis ossos de seu corpo se quebraram, seu sangue atirado em todas as direções, cada pedaço do seu corpo sentia uma dor insuportável, e muitos diriam, que morrer seria melhor do que experimentar tamanho sofrimento.
           Com a face esmagada no chão, sangue por todos os lados espalhando-se pelo mar, tantos ossos do corpo em pedaços, rosto mergulhado e pulmões enchendo-se de água salgada, parecia o fim do poeta.
          Entretanto, eis aí a dádiva e ao mesmo tempo, o grande infortúnio dos que sentem demais. É impossível a morte por queda… os poetas são imortais. Mas e a dor? Ah, a dor é tamanha que muitas vezes a morte lhes parece um destino muito mais doce e gentil.
          Passa-se o tempo e o poeta permanece mergulhado na água, sentindo seu sangue se esvaindo, seus ossos despedaçados, o sal em seus ferimentos e a água em seus pulmões. O tempo se vai… e aos poucos o poeta começa a se recuperar, demora, demora muito, uma eternidade, mas seus ossos quebrados eventualmente se consertam, o sangue perdido volta a bombear em suas veias, e ele lentamente começa a rastejar, sentar-se, levantar-se, caminhar, ele volta a olhar para o sol. A dor ainda não passou, mas é menor, mais suportável a cada dia.
        O mais cedo possível, o poeta, apesar de ainda nem estar completamente recuperado, carregando consigo cicatrizes que permanecerão por uma vida inteira, logo volta a escalar a montanha, e ei de avisar, que a escalada já é difícil por si só, mas com tantos ossos tão recentemente quebrados, com tão pouco sangue percorrendo seu corpo, todo o cansaço dos ferimentos e da queda, torna a subida quase que impossível. Mas ele não desiste nunca, e o poeta logo alcança novamente o topo da montanha. 
          Do alto do abismo o poeta admira a paisagem da solidão… as nuvens passam entre as suas mãos, ele corre como se sua própria vida dependesse disso, e se joga mais uma vez. 
          Ao sentir a indescritível dor da queda, é plausível compreender que algumas pessoas jamais conseguem pular outra vez. No alto da montanha é mais seguro, mais tranquilo, lá é fácil… o poeta entende perfeitamente o sentimento de todos que se recusam a saltar uma segunda vez.
           Mas ele simplesmente não consegue. Se atirar do alto do abismo é a natureza do poeta, mesmo sabendo da imensa possibilidade de quase sempre atingir superfícies extremamente rasas, que o farão quebrar todos os ossos do seu corpo, tal medo não é o suficiente para impedir o poeta de saltar. Se arriscar na queda para o poeta é vício, é impossível não se jogar.
          Então, ele salta mais uma vez em direção ao desconhecido, na esperança que desta vez, quem sabe, consiga alcançar a verdadeira profundidade e imensidão do mar.
          Contudo, para o poeta, o maior prazer é a queda. O vento cortando seu rosto, estar no ar ainda que seja por tão poucos segundos sem tocar nada, a liberdade de sentir tudo até o último momento, é tudo tão rápido, e ele sempre sabe que muito provavelmente atingirá mais uma vez o chão raso que irá quebrar todos os ossos do seu corpo. Isso tudo, por uma brevidade tão ínfima. Será que vale mesmo a pena? 

          O salto, pela queda?

          Sim.

          Vale.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Reescrevendo (Fev/2014) - Amor de 13 anos

Bom mesmo é amor de treze anos, já parou pra pensar?
Com treze anos você podia chegar pra alguém e dizer eu te amo, quer namorar comigo?
Do nada.
Aí você cresce e dizer eu te amo vira proibido.

Já pensou virar pra alguém na rua e dizer eu te amo?
Mas como assim! Você nem conhece?
Conheço sim, de outra vida.
Quando éramos gatos.
Você só esqueceu, mas eu me lembro.

Você tem que se aproximar das pessoas com cuidado, se fala demais com elas, tá enchendo o saco. Se puxa conversa, tá dando mole. Se você tenta falar com alguém que não conhece, tá “cantando”.

Não dá mais pra chegar no meio da rua, e falar pra alguém “Hey, quer ser meu amigo?” Caraca que estranho. Adultos não fazem isso. Você é retardado?

Vamos andar por aí? Tá louco! Quer me levar pra onde? É bandido.

Crescer é muito chato.
Te prometem liberdade, mas cadê a minha?

Quando eu era criança eu podia chamar qualquer um na rua pra ser meu amigo. Podia mandar uma cartinha pra uma menina que eu não sabia nem o nome e dizer “eu te amo”.

E hoje nada pode.
Até falar com alguém do nada é estranho.

Bom mesmo é amor de 13 anos. Se apaixonar perdidamente, quebrar a cara certamente.

Aí você fica velho e já nem se apaixona mais. A vida se torna uma grande sucessão de decepções, tudo é previsível, prevenido, precavido, precário, no pretérito, uma porra.

Bom mesmo é amor de 13 anos.
Quando você não pensa em mais nada. Só em estar apaixonado.

Aí você fica velho e a vida te cobra, são compromissos, afazeres, dinheiro, responsabilidades, obrigações, dinheiro, estudar, trabalhar, dinheiro, sobreviver, dinheiro.

E você se esquece até de se apaixonar.
Por alguém, por algo, por qualquer coisa, por viver.

Ai você vira esse pedaço de máquina. Sem saber pra onde ir, sem saber onde estar, seguindo o fluxo, mas um na multidão.

Bom mesmo era meu amor de treze anos.
Eu escrevia cartas pra ela e dava flores. Eu dizia que a amava e nada mais importava.

Meu amor de treze anos, treze anos atrás. Disse que me amava.
Aí a gente cresceu, a vida chegou e o amor passou.
Só vinte e seis anos, mas me sinto tão velho.

A vida te quebra em cacos, você pode até juntar,
mas remendado não é inteiro.
Amor de 13 anos nunca mais, fiquei velho.
Amor de 13 anos só aquele, de 13 anos atrás.

Eu podia voltar a falar com as pessoas no meio da rua.
Escrever cartas de amor, fazer novos amigos.

Vou ali ter treze anos
Jogar videogame, me lambuzar de sorvete.
Escrever cartas de amor.
E ser feliz.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu último desvario

Acordei com um sorriso no rosto, ela do meu lado ainda dormindo. Passei uns minutos admirando ela na cama, eu diria, tão apaixonado quanto fui desde que a conheci tantos anos atrás, mas era mentira, na verdade, cada dia que passava eu a amava mais.
Mas foi rápido, logo fomos atacados na cama. Um ser saltou sobre mim e se jogou entre a gente para nos acordar, “Papai! Papai!” O pequenino gritou. “Vem ver o que eu fiz!”  Ela reagiu com uma careta de quem foi acordada cedo demais, engraçado, as coisas mudam, eu que costumava reclamar de acordar cedo, ela falou ainda com os olhos fechados “Vão lá, vocês dois... Que eu quero dormir”.
Sai carregando ele da cama, na sala ele gritou “Olha o desenho que eu fiz!” Peguei a folha, admirei os rabiscos e falei “Meu Deus! Esse garoto será um grande artista!” E em seguida perguntei “E sua irmã onde está?” E o pequeno me respondeu “Deve estar no quarto dormindo ainda”.
Soltei ele na sala e fui lá ver a pequena, estava deitada na cama dormindo tão tranquila... peguei ela nos braços, o casal que sempre quisemos ter, mas a verdade é que não imaginávamos que iam acabar vindo os dois de uma vez só.
Aliás, sempre não, minto.
Quando te conheci nunca imaginei que teria filhos. Eu gritava pra todo mundo que jamais faria isso. Crianças? Dão trabalho demais. Nossa! São um gasto muito grande! Odeio crianças.

Soltei a garotinha dos meus braços, e tudo se passou na minha cabeça.

Despertando do meu devaneio acordado, me encontrei na minha cama sozinho olhando pro teto, e logo percebi que tudo que eu havia sonhado jamais iria se realizar. Mas por que não? O que de impossível havia nessa realidade tão simples.

Você.
Você partiu.

Entrou na minha vida, no meu coração. Mudou meus planos, me mudou. E foi embora. Sem motivo, explicação, sem porquê, você partiu e me deixou aqui só.
Você sempre disse que o meu maior problema era que eu não tinha planos. E bom, era verdade. Viver um dia de cada vez, Carpe Diem era meu lema. Não pensar muito no amanhã ou cinco anos na frente, eu era assim.
Mas é engraçado como as pessoas mudam. De repente, agora tudo que eu mais tenho são planos, para daqui há um mês, ou dois, e até para cinco anos no futuro. Eu agora queria uma família, e sonhava com o casal de filhos que você sempre falava. Eu que quis ter todas as mulheres, de repente, nos meus planos, só havia uma e mais ninguém. Se o problema era que vivíamos em mundos diferentes, de repente, tudo que eu queria era entrar no seu mundo e viver nele, não somente por você, mas sim, porque se tornou realmente o que eu queria.
Eu te perguntei, “Se pudesse mudar algo em mim, o que seria?” E você me disse, “Eu gostaria que você tivesse planos.” E agora tenho planos, todos os planos do mundo. Todos os planos que você sempre quis.
Mas...
Todos os meus planos são com você.
E você partiu.

Um lado de mim sempre fica esperando que você vá voltar. Que você consiga sonhar como eu sonhei, a mesma fantasia que se passou na minha cabeça, nós dois acordando juntos e um casal de filhos pulando por aí uns anos a frente. E que você quisesse tanto quanto eu torná-la realidade. Mas um outro lado meu, sabe que você nunca vai voltar.
O problema é que mesmo que você conseguisse ver o que sonhei, e voltasse para mim, se, ou quando isso acontecesse, pode já ser tarde demais.
Cada dia que passa eu fico mais distante, e dou mais um passo sem volta para longe de você. Hoje eu ainda me pergunto se ainda seria possível, mas amanhã eu talvez nem me pergunte mais. Amanhã provavelmente já vai ser tarde demais.
Você me pediu um tempo para pensar, um tempo sozinha, um tempo para você, um tempo para analisar tudo isso.
E eu resolvi te dar, resolvi me afastar o máximo que consegui, queria ver você melhor, queria que você pensasse mesmo bem no que fazer e tomasse a decisão certa. Mas aí eu fico pensando se eu ainda estarei aqui quando você tomar. Ou se você tomar.
E infelizmente eu acho que não.
Cada dia que passa eu me distancio mais, e a verdade é que já dei tantos passos para longe que nem sei mais se é possível voltar. E eu sei que em breve eu estarei definitivamente longe demais.
Mas enquanto eu amar, eu vou lutar por amor. Como disse Príamo, rei de Troia, “Eu já lutei tantas guerras na minha vida, várias por territórios, outras por poder, algumas por glória. Mas agora, eu acredito que lutar por amor, na verdade, faz mais sentido que todo o resto”.
Eu comecei a escrever esse último desvario na esperança de te falar que o que você queria que eu mudasse, havia mudado, e que agora poderíamos ser felizes juntos. E que se existiam motivos para dúvidas, agora não existiam mais. E que eu ainda queria tanto que você voltasse. Que eu ainda te amava. Que eu iria continuar lutando por amor e que tudo teria valido a pena.
Mas isso tudo foi ontem de manhã.
Agora, já é hoje à noite, eu me pergunto se já não ficou tarde demais.
Na verdade, eu acho que já é tarde demais.

E que esse último desvario por você, na verdade foi uma carta de despedida.

sábado, 1 de abril de 2017

Reescrevendo (Abr/2014) - Só havia você

Ela olhou para ele e sorriu
Foi só um segundo, um piscar de olhos.
E pronto, não precisava de mais nada.
O dano estava feito.

Ele olhou para ela, e ela desviou o olhar
Ficou com vergonha, como quem se esconde.
Mas sorriu
E pronto, não precisava de mais nada.

Ela olhou para ele
E foi difícil esquecer
Não sei por que

Ele olhou para ela e desapareceu
Não conseguia ver mais nada, só seus olhos
Passou a mão nos seus cabelos e se perdeu

Perdeu as mãos
Perdeu os sentidos
Perdeu a cabeça
E pronto, já estava perdido

Ela olhou para ele e o beijou
Não se arrependeu
Aí caro amigo, foi o fim.
Já não havia mais volta,
Nem estrada mais havia
Só havia você.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A mais bela arte

Um dia encontrei um artista
Ele me entregou em mãos o mais belo dos pinceis, e disse:
Este pincel é mágico
Basta tocá-lo e você poderá desenhar o que quiser
Se tornará de todos o mais belo dos quadros
Nada há de se equiparar a tal beleza

Atônito, peguei o pincel em minhas mãos
Dediquei-me a somente um quadro
A mulher dos meus sonhos
O pincel em minhas mãos desenhava sozinho
Em pouco tempo já estava pronto
O quadro perfeito
A mais bela dama já criada na história da arte

Não contente o artista
Entregou em minhas mãos o mais belo lápis, e disse:
Esse lápis é mágico
Basta tocá-lo e você poderá escrever o que quiser
E se tornará de todos o mais belo dos poemas
Nada há de se equiparar a tal beleza

Maravilhado peguei o lápis em minhas mãos
Dediquei-me somente a uma poesia
A mulher dos meus sonhos
O lápis em minhas mãos escrevia sozinho
Em pouco tempo já estava pronta
A poesia perfeita
Falava da mulher mais bela já descrita
Na história da humanidade

Depois ele me deu ferramentas mágicas
E esculpi a mais bonita donzela
Entre as esculturas do mundo inteiro

Admirado eu olhava as minhas obras
E sabia que no universo não existia nada mais belo

Aí você passou do meu lado
E de repente toda arte que fiz
Tornou-se hedionda em um segundo

Mesmo com o pincel mais mágico,
O melhor lápis, as mais perfeitas ferramentas,
Ou o melhor dos artistas
Nada no universo conseguiria criar algo tão belo

Esqueci poesia, pintura, escultura
Esqueci o sol, a lua, as estrelas

As belezas do mundo inteiro
Só queria admirar você

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Reescrevendo (Mar/2011) - O Paladino Caído

Num reino antigo, próspero e belo havia um príncipe. Um paladino, guerreiro da justiça. Desde criança havia sido treinado na arte da cura e da espada. Era um guerreiro formidável. Conhecido como Licec da alma de prata, era admirado por todos do reino e onde passava todos reconheciam sua espada, seu rosto e seus cabelos prateados. Altruísta, sua bondade para com os outros era conhecida por todos.
Licec por diversas vezes entrou em combate com inúmeros demônios e sempre saiu vitorioso. Sempre, até aquele dia.
Era uma noite calma e silenciosa, Licec dormia em paz em seu castelo ao lado de sua amada princesa, o amor de sua vida.
De repente gritos, desespero, trevas. O reino inteiro estava em pânico. Dezenas de soldados caiam mortos por todos os lados do castelo. Um Lord, como eram conhecidos os mais poderosos demônios, atacava-os. Licec sabia o porquê, os Lords sempre atacavam com esse propósito, eles iam atrás dos mais poderosos guerreiros para convertê-los em cavaleiros das trevas. Ele era o alvo.
“Sou eu quem ele quer” foi o que pensou. Pegou sua espada e desceu correndo as escadarias da torre. Ao chegar lá embaixo, grande foi sua surpresa ao descobrir que o monstro já não estava mais lá. Um dos soldados o alertou:
- Ele voou até o seu quarto!
Licec voltou correndo, espada empunhada. Mas já era tarde demais, o destino já tinha envolvido suas cordas através do corpo dele e não havia mais nada que ele pudesse fazer. Ao chegar ao quarto não havia nenhum demônio lá, apenas a princesa.
- Licec da alma de prata, eu vim levar você.
Foram as palavras que saíram da boca dela.
- Não!
Um grito prolongado e desesperado, carregando nele todo o horror que havia no coração e nas lágrimas do guerreiro da alma de prata. O demônio havia tomado o corpo de sua amada.
A princesa foi ao encontro de seu cavaleiro, colocou a mão em seu rosto e disse:
- Mate-me.
Só o peso dessas palavras foram o suficiente pra derrubar sua espada e fazê-lo cair de joelhos no chão.
Um som agudo de destruição, seguido pelo barulho dos estilhaços da torre despedaçada. Com uma rajada de energia o demônio, ainda no corpo da princesa, destruiu o teto e as paredes da torre fazendo com que fosse possível ver todo o castelo daquele lugar.
Ele apontou para os soldados mortos e para o rastro de destruição que ele deixou ao passar como quem demonstra o quão grande era o estrago que ele era capaz de produzir em tão pouco tempo.
A sua escolha é simples paladino. Você pode matar sua amada e salvar o seu reino. Ou pode deixá-la viver a custo da vida de todas as pessoas dessa cidade.
-Não importa que escolha você faça, você já perdeu. Eu posso sentir... A partir do momento que minhas palavras o atingiram eu plantei a dúvida em seu coração. Meu objetivo já foi cumprido, a sua escolha é irrelevante. Você pode manter a vida da sua amada e seu egoísmo de não conseguir deixá-la partir trará por consequência a morte de centenas de pessoas e você não conseguirá lidar com isso e seu coração enfraquecerá. Ou você pode matá-la, porém mesmo salvando todas as outras pessoas, o sangue das vísceras dela nunca será lavado de sua alma. Você se culpará para sempre pela morte dela e mesmo que você tente perdoar a si mesmo com a desculpa de que a matou para salvar centenas de vidas de nada adiantará. Você nunca perdoará a si mesmo e seu coração enfraquecerá. Você já perdeu, agora faça a sua escolha, tome o tempo que quiser. Por enquanto, eu seguirei matando esses seres insignificantes como formigas que correm pra fora do formigueiro quando pisado. Algumas dezenas por vez.
Novamente o som agudo perfura o ar e uma rajada de energia atinge alguns soldados que caem mortos entre poças de sangue no chão. O que se passava na mente ou no coração de Licec era algo indescritível. Como um grande branco, um vazio. E não importava o quão forte fosse seu espírito, sua alma havia sido dilacerada. Seu corpo estava tão paralisado quanto seus pensamentos. E o demônio continua seu discurso...
- Você sabe que não há solução, sabe que é impossível me tirar do corpo da garota, sabe que eu posso matá-la quando quiser. E sabe que não fazer nada é a pior das opções. Como eu falei, o seu coração já foi atingido, seu espírito destruído e qualquer opção que você tome é irrelevante. Não fazer nada também é uma opção, assim eu só terei que matar tanto todos os cidadãos do seu reino, quanto a sua amada e neste momento seu coração estará pronto para se tornar um cavaleiro das trevas. Licec, você sabe por que os cavaleiros das trevas não temem a morte? Eles já estão mortos. Depois de hoje, sua alma, suas emoções e sua razão estarão tão abaladas que você desejará tanto ter morrido antes. Somente para não ter passado por este dia. Você lutará em meu nome, buscando constantemente nos campos de batalha seu descanso eterno. E a morte e somente ela será sua recompensa um dia. E saiba que se você tentar se matar agora, só facilitará o procedimento. Um ferimento físico é tudo que falta a seu corpo pra completar a sua transformação.
Silêncio... Destruição... Ele atacou mais uma vez.
- Licec, eu não tenho a noite toda. Já estão todos mortos, sua amada, seu reino, você. Ainda não entendeu? Vamos, mate-me! Eu destruí o seu reino, a sua amada, a sua vida! Tudo já está perdido! Onde está seu ódio? Odeie-me!  
O paladino da alma prateada pegou sua espada e fincou no peito de sua amada.
- Isso Licec. O demônio saiu do corpo dela pela sombra e materializou-se outra vez. A espada de Licec estava banhada em sangue. A princesa voltou a si, olhou nos olhos de seu amado uma última vez em vida, colocou as mãos na lâmina de sua espada e caiu ao chão. Seu corpo ensaguentando estirado no quarto com a espada fincada em seu peito. O Lord arrancou a espada do corpo da princesa, a lâmina dela tornou-se negra. Ele fincou a espada no coração de Licec e o paladino caiu de joelhos no chão.
- Cavaleiro negro.
- Sim, mestre.

- Levante-se.