Nosso Castelo de Cartas

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terça-feira, 15 de março de 2016

Dois copos, um conto - O menino que não acreditou (Parte 1)

Eu tenho dificuldades em começar as coisas. Gosto de pensar num mundo em que os planos mais mirabolantes e perfeitos podem dar certo. Tentar é sempre perigoso demais. Gosto de imaginar e sonhar. O Cebolinha, das histórias em quadrinhos que eu ouvia quando menino, tinha sempre uma boa ideia. E eu não. Eu sempre parecia separado. Tudo meu era separado. Separado. Deslocado. Escrevia meus registros de caderno nas folhas erradas. Perdia os bilhetes que vinham da escola. Não anotava recados. Eu nem percebia, mas sabia voar. E como eu voava.
Na hora das explicações da professora, dragões saltavam pelas janelas e eu era o único defensor que podia expulsá-los. E tinha que ser somente com o olhar. E tinha que ser sem ninguém perceber. Era segredo, era secreto e eu era Bond! James... Bo... Até a hora que a professora, perfeita espiã russa, percebia e reclamava gritando comigo. O que você pensa que está fazendo? Esse garoto tem algum problema... Isso não é possível. E eu assistia aos dragões devorando toda a classe enquanto eu saía da sala.
O diretor era bem legal. Ele tinha um bigode engraçado e sempre sujo. Tinha sempre alguma mancha ou pedaço de algo nele. Eu me entretinha enquanto ele falava, cuspia e se sujava mais ainda. Era tão engraçado ver as pequenas gotas de saliva em sua barba que eu nem me chateava. Nunca levei um só bilhete dele até em casa. Ficavam pelo mundo, por aí. Eu sorria por dentro e fazia cara de desespero por fora. Deixava o diretor bigode gritar bem alto e pedia desculpas. Não por deixar toda minha turma morrer devorada e queimada por dragões, mas por ter a mente solta demais e deixar que qualquer brisa a levasse pra longe.
Brisa... Ela me levava pra longe... Mas não quero falar dela ainda. Isso é assunto pra depois.
A hora que o telefone tocava eu iniciava uma corrida contra mim mesmo. Se eu contasse três toques e não atendesse, algo terrível iria acontecer. Eu só não sabia o que era, mas sabia que era terrível. Eu derrubava as coisas no caminho e caía quase sempre, mas sempre dois toques. Nunca três. Às vezes dois e meio. Pelas minhas contas. Eu não gostava da voz de algumas pessoas. Os homens que perguntavam da minha mãe e as mulheres que procuravam pelo meu pai eram sempre mal atendidos e mesmo que eles estivessem ao meu lado, dizia que eles tinham saído. Eu vi na TV o que acontecia e não queria aquilo. Tomei uns três ou dez tapas por isso. Talvez mais.
Na hora de anotar o recado ou número ou o nome ou o recado mesmo, eu desenhava na folha e dizia hãram... Hãramm... Hummm... E o desenho ia sempre ficando mais legal conforme as pessoas continuavam falando e não desligavam. Eu desenhei um dragão uma vez e ele dizia à professora que era tudo culpa dela. Não deu tempo de desenhar mais nada.
Uma vez eu sonhei que sabia nadar. Eu nadava entre os peixes e tubarões e ia muito rápido. Acordei surpreso por descobrir que nós podíamos aprender as coisas sonhando. Passei o resto do mês aprendendo a voar. Eu deitava e ficava forçando o pensamento, imaginando a cena e tentava sonhar, mas o sonho não vinha. Outra vez, meio que sem querer, sonhei que voava, mas começava a cair depois de um tempo. Acordei e não levantei. Cobri o rosto com o lençol e continuei tentando sonhar que voava. Consegui! Finalmente! Aprendi a voar!

Não podia esperar! Assim que levantei, corri até a janela. Ia voar até a escola e todos veriam do que sou capaz. O diretor bigode ficaria muito surpreso. A professora ia pedir desculpas por me chamar de problema. A Brisa... Ah! A Brisa...