Nosso Castelo de Cartas

Nosso Castelo de Cartas

terça-feira, 4 de julho de 2017

Mergulho e Queda

          Do alto do abismo o poeta admira a paisagem da solidão, as nuvens passam entre as suas mãos. Ele deita no chão frio e observa o céu azul, não há mais nada afora o mar escuro tantos metros abaixo. 
          O poeta levanta, sorri, e corre desesperadamente para a beira do abismo como se sua própria vida dependesse disso, ele pula, salta, se joga, se atira, se lança ao nada do horizonte como se não houvesse amanhã. Seus movimentos são perfeitos, mergulhador profissional, já pulou tantas vezes que sabe exatamente o que fazer, como pular, em que posição descer e como cair. Foi um salto perfeito. 
            E é aqui que você entende porque os poetas são mergulhadores. É o vento que corta seu rosto, a sensação de não ter chão sob seus pés, a liberdade de não ter absolutamente nada te segurando. 
        Ele segue com toda velocidade para frente, rosto em direção à água, mas é aí que mora o problema… todo pulo é um mistério… um salto de fé em direção ao desconhecido, mas às vezes, na verdade, na grande, esmagadora maioria das vezes, a aterrissagem é catastrófica. Os poetas vivem de mergulhos profundos, atirados ao infinito sem medo das consequências… é inevitável... sentir é seu vício, e todos que sentem demais entendem que se este é o mais belo dos dons, ao mesmo tempo também é a mais terrível de todas as maldições.
      Afinal, a liberdade do salto… o vento atravessando o rosto, sentir o peito palpitando a velocidades absurdas… Vale a queda?
            Porque a queda é hedionda, aterrorizante, impiedosa.
         O som que vem em seguinte é terrível. Mais uma vez, o poeta se atira com toda vontade em direção ao desconhecido… mas mergulhos profundos em superfícies rasas não são algo bonito de se ver. O poeta atinge a água com toda velocidade, a profundidade do chão? Dez centímetros. Serei honesto com vocês, de tantos saltos que deu na vida, ele nunca antes em toda a sua história havia atingido uma superfície tão rasa, fútil, egocêntrica.
       Foi arrasado, destruído, assolado, danificado, avariado, inutilizado, desfeito, desmanchado, demolido, derrotado, arruinado, desolado, desbaratado, aniquilado, destroçado, abatido, devastado. Incontáveis ossos de seu corpo se quebraram, seu sangue atirado em todas as direções, cada pedaço do seu corpo sentia uma dor insuportável, e muitos diriam, que morrer seria melhor do que experimentar tamanho sofrimento.
           Com a face esmagada no chão, sangue por todos os lados espalhando-se pelo mar, tantos ossos do corpo em pedaços, rosto mergulhado e pulmões enchendo-se de água salgada, parecia o fim do poeta.
          Entretanto, eis aí a dádiva e ao mesmo tempo, o grande infortúnio dos que sentem demais. É impossível a morte por queda… os poetas são imortais. Mas e a dor? Ah, a dor é tamanha que muitas vezes a morte lhes parece um destino muito mais doce e gentil.
          Passa-se o tempo e o poeta permanece mergulhado na água, sentindo seu sangue se esvaindo, seus ossos despedaçados, o sal em seus ferimentos e a água em seus pulmões. O tempo se vai… e aos poucos o poeta começa a se recuperar, demora, demora muito, uma eternidade, mas seus ossos quebrados eventualmente se consertam, o sangue perdido volta a bombear em suas veias, e ele lentamente começa a rastejar, sentar-se, levantar-se, caminhar, ele volta a olhar para o sol. A dor ainda não passou, mas é menor, mais suportável a cada dia.
        O mais cedo possível, o poeta, apesar de ainda nem estar completamente recuperado, carregando consigo cicatrizes que permanecerão por uma vida inteira, logo volta a escalar a montanha, e ei de avisar, que a escalada já é difícil por si só, mas com tantos ossos tão recentemente quebrados, com tão pouco sangue percorrendo seu corpo, todo o cansaço dos ferimentos e da queda, torna a subida quase que impossível. Mas ele não desiste nunca, e o poeta logo alcança novamente o topo da montanha. 
          Do alto do abismo o poeta admira a paisagem da solidão… as nuvens passam entre as suas mãos, ele corre como se sua própria vida dependesse disso, e se joga mais uma vez. 
          Ao sentir a indescritível dor da queda, é plausível compreender que algumas pessoas jamais conseguem pular outra vez. No alto da montanha é mais seguro, mais tranquilo, lá é fácil… o poeta entende perfeitamente o sentimento de todos que se recusam a saltar uma segunda vez.
           Mas ele simplesmente não consegue. Se atirar do alto do abismo é a natureza do poeta, mesmo sabendo da imensa possibilidade de quase sempre atingir superfícies extremamente rasas, que o farão quebrar todos os ossos do seu corpo, tal medo não é o suficiente para impedir o poeta de saltar. Se arriscar na queda para o poeta é vício, é impossível não se jogar.
          Então, ele salta mais uma vez em direção ao desconhecido, na esperança que desta vez, quem sabe, consiga alcançar a verdadeira profundidade e imensidão do mar.
          Contudo, para o poeta, o maior prazer é a queda. O vento cortando seu rosto, estar no ar ainda que seja por tão poucos segundos sem tocar nada, a liberdade de sentir tudo até o último momento, é tudo tão rápido, e ele sempre sabe que muito provavelmente atingirá mais uma vez o chão raso que irá quebrar todos os ossos do seu corpo. Isso tudo, por uma brevidade tão ínfima. Será que vale mesmo a pena? 

          O salto, pela queda?

          Sim.

          Vale.