Nosso Castelo de Cartas

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terça-feira, 10 de novembro de 2020

A cigana de fogo (Ato 1)


1813
Europa ocidental
Voltava pra casa após mais um dia de trabalho nada incomum
Distante eu vi uma fogueira
Um povo estranho em volta dela dançando e cantando
Me aproximei
Talvez
Demais

Ergueu-se de dentro das chamas
Uma cigana de pele clara como a lua cheia
Cabelos amarelos como as chamas em volta de seu corpo
Olhos da cor do mar

Eu olhei dentro de seus olhos
Só por um segundo
E me perdi

De repente era náufrago
Sem chão sob meus pés
Perdido na imensidade do mar


Fiquei a admirar a cigana dançar
Ela movia o fogo aos céus
Com seus braços entrelaçados acima do rosto
Seu cabelo se perdia entre as chamas atrás de seu corpo
A fluidez dos seus dedos
Transformava o fogo em ondas
Do mar
Que me puxavam cada vez mais
Do porto seguro, da praia tranquila
Pra dentro daquele aterrorizante mar de fogo

Um passo de cada vez eu me aproximava da cigana
Como um velho andando lentamente em direção a morte
Mal sabia eu
Que já estava condenado
Já estava enfeitiçado
Pela cigana de fogo
Dos olhos de mar

Uma rosa que a cigana atirou aos céus
Caiu sob meus pés
Eu me abaixei, a peguei
Me apeguei
A rosa vermelha da cigana
Que dançava ao luar

Eventualmente os observadores partiram
Depois os donos da festa se levantaram
Por último os músicos pararam de tocar
E a cigana que me enfeitiçou parou de dançar

Ela se aproximou de mim e sorriu
Como um gago, mal consegui falar
A cigana pegou suas coisas e partiu
Mas eu gritei
Espere!
Não se vá!

Eu corri ao encontro da cigana de fogo
Perguntei seu nome
Segui seu caminho com ela
Afinal sem a cigana, tão bela
Eu jamais conseguiria ficar

A cigana de fogo
Me enfeitiçou com seu olhar
Dormi aquele dia ao lado dela
Foi muito melhor que sonhar

Naquela triste manhã escura
Acordei ao nascer do sol
Sozinho

Procurei a cigana em todo lugar
Eu não a encontrei
Mas ela me encontrou e me disse

Me perdoe
Mas aqui não é meu lugar
Terei que partir
Pra nunca mais voltar

Eu me ajoelhei
Implorei
Cigana de fogo
Por favor!
Não vá

Seus olhos de mar
Se encheram de lágrimas
Ainda assim a cigana se foi
Mas ela me prometeu voltar

Com um sorriso no rosto
Eu deixei a cigana ir
Na esperança e na certeza
Que um dia ainda
Haveria sorrir

Então no outro dia eu voltava pra casa
Após mais um dia de trabalho nada incomum
Distante eu buscava a fogueira da cigana
Mas nada encontrei

Passou-se um dia
Um mês
Um ano

Dia após dia
Eu buscava a cigana
Por todo lugar

Construí uma casa
Pra gente morar
A cama minha e da cigana
Onde ela iria deitar

Plantei uma rosa vermelha no chão
Pra dar a cigana de fogo
As mais belas flores do meu jardim
Quem sabe assim
Quando voltasse
Aqui comigo
Ela ficasse
Do meu lado
Até o mundo acabar

Disseram-me
Esqueça a cigana!
Disseram-me
Era uma bruxa que o enfeitiçou!
Primeiro eu não os ouvi
Depois quis muito escuta-los
Mas é claro que não consegui

Todo dia, pra cigana, eu esquentei um chá
Todo dia eu implorava pra ela voltar
Colocava minha roupa mais bonita
Levava comigo a rosa mais bela do jardim
Atravessava a cidade em busca da cigana
Mas ela...
Ela nunca estava lá.

Os anos passaram
Eu passei

Como um velho andando lentamente em direção a morte
Bem sabia eu
Que ainda estava condenado
Ainda estava enfeitiçado
Pela cigana de fogo
Dos olhos de mar

No meu último dia na terra
Ainda teimei em insistir com as estrelas
Por que? Ah! Uma promessa
Uma promessa há
Cigana dos cabelos de fogo
Talvez não nessa vida
Mas ainda irei te encontrar