Querida Amanda, me desculpe, eu não vou
voltar. Mande lembranças ao Jeff e um grande abraço para Cadu.
Deixe-me contá-la. Era um simples 10 de
julho do ano de 2008. O dia fatídico. Tudo mudou. Os crepúsculos e as luas
cheias nunca mais foram as mesmas.
Primeiro, eu me apaixonei. Não foi a
primeira vez e você sabe disso. Mas você entende que isso por si só não muda
nada. Segundo, eu a amava. Ela também amava... Mas era o Lucas.
Normal até agora. Isso tudo ainda não muda
nada.
Era apenas mais um caso comum de triângulo
amoroso e uma história super sem graça de três adolescentes de 15 anos que mal
merecia ser escrita no diário dela. Seu nome? Marina. Belo como as ondas do mar
e os versos que cantaram por Mariana. E como todas as outras muitas (uma ou
duas) garotas que conheci na vida. Eu jurei que ela seria minha. Frase
obsessiva, possessiva e, sejamos sinceros... infantil. Hoje, já faz dez anos. E
você deve estar se perguntando agora por que eu não vou voltar. E que merda isso tem a ver com 10 de julho de 2008.
Eu mudei. Sim, foi isso. E não foi hoje,
não foi ontem. Foi naquele dia fatídico. E não foi você, nem eu. Foi ela:
Marina. Um vestido amarelo, uma flor que eu não sei o nome na cabeça. Cabelos
ao vento, câmera em slow motion... Eu
ainda lembro-me dela dessa forma.
10 de julho de 2008.
Eu acordei e o sol
forte me dizia que aquele ia ser mais um dia do tipo “igual a todos os
outros”. Por mais incrível que pareça, estava enganado.
Engraçado que a vida não parece se enganar
se tomarmos como pressupostos alguns fatos, fatídicos ou não. Engraçado é como
o dia aparentava não se importar com o que eu pensava sobre isso também. Isso
supus, logo ao levantar. Aquele momento de luta contra o eu interior que te
fala alto e com autoridade: “você estará sempre com o cansaço que quero que
esteja e tudo pode esperar mais uns dez minutos”. Minutos estes suficientes
para que eu não voltasse a ouvir o despertador (que por algum detalhe sórdido
do destino era a minha televisão). Dormi. Acordei com as palavras e suor no meu
corpo.
Elas diziam “Marina”.
Levantei ainda sob forte luta. E, mesmo dormindo demais, parecia que tinha ficado ainda
mais cansado que a primeira vez. Tinha levado uma surra. Às vezes a vida me
bate forte demais. Levantei dizendo-me que aquele seria mais um dia cansativo e
coisas do tipo.
Não fui à escola. Tempos fáceis esses de
criança. Assim pensam todos. Para mim era viver num drama. A escola parecia um
velho internato de aberrações que, por mais que fossem assustadoras para mim,
eu, com os super-poderes que julgava ter, conseguia assustá-las ainda mais.
Ninguém gostava de mim. Assim eu pensava. Eu não gostava de ninguém. Isso
estava prestes a mudar.
Decidi marcar algo, qualquer coisa que me
livrasse daquele momento e daquele lugar. Que me levasse para longe. Que me
deixasse disperso por um tempo. E desperto. Dormir eu não conseguiria mais. E
tem horas que até os jogos conseguiam me cansar de uma maneira que me assustava
às vezes. Sei lá. A vida não tinha mais graça.
Liguei para o Alberto. Disse o de sempre.
“Tédio?” – perguntei. “Tédio” – respondeu. Ele também era bem previsível, assim
como eu fui. Talvez seja. Você consegue me responder isso, Amanda? Lembro
daquela frase de uma autora que dizia que perdeu sua face em um espelho. Devia
ser um espelho desses bem velhos que ela nem lembra onde deixou para ir
procurar.
Talvez eu me sinta assim. Perdi meu
coração naquele dia. E isso foi só o começo de uma terrível história de
perdição. Nós começamos a perder e parece um esporte tão divertido. Esquecemos
de parar. Esquecemos muitas coisas no caminho, Amanda.
Saímos. Cansados de tudo e todos.
Fomos a lugares encontrar tudo e todos. Cinema? Sim, parece uma boa. O que
acha? Ah! Meu amigo... Não acho nada... Conversei com um rapaz novo da turma
ontem. E aí? Ele parecia mais velho. Pensou que ia te entender? Pensei. E...? E
ele parece gostar de tudo que a maioria pré-adolescente gosta... Ele me dá nojo
agora. Não tente... Nunca mais... Talvez alguém de seus 45 anos? Alberto... Um
dia você vai entender que nascemos mortos.
Não eram frases de crianças de 15
anos.
Aumente o drama, DJ. Alguém dizia isso?
Chegamos. Lugar comentado. Todos fugiam da escola para lá. Todos apareciam
depois. E nós fomos, mesmo não querendo encontrar ninguém (Oh! Quão errado eu
estava... Eu queria encontrar Marina... Mesmo sem nem conhecê-la). Algumas
pessoas falavam conosco. Outras não. Outras esbarravam. Não começamos nenhuma
briga. Você lembra desse meu jeito de não entrar em certas coisas que sei que
vou perder, não é mesmo?
Continuamos. A fila crescia. Tédio. Tédio.
Tédio. Ou o quê? Foi num pulo. Foi num momento. Foi num lançar de olhar. Eu a
vi passar por mim. Seu nome?
Marina, bela como as ondas do mar e os
versos que cantaram por Mariana. E como todas as outras muitas (uma ou duas)
garotas que conheci na vida, jurei que ela seria minha. Frase obsessiva,
possessiva, e, sejamos sinceros... Infantil.
Mas era uma promessa.
Não sabia seu nome até essa hora. Quem é
ela? Quem é ela, Alberto? Ela quem? A menina do vestido amarelo! Ok. Qual
delas? Aquela... Com a flor no cabelo... A mais linda de todas... Ela? Não seja
idiota. Ela nunca vai te olhar. Seu nome é Marina. Ela nunca olha para ninguém.
É um desafio para qualquer um.
Aquela palavra.
Eu podia ver seus lábios se movendo
naquele momento dizendo:
- Desafio.
Que palavra aterradoramente linda. Eu
disse a Alberto. Adoro desafios. E parti em sua direção. Neste momento, eu
perdi meu coração...
“Adoro desafios” – eu comecei aquela noite
dizendo. Pergunte a Alberto qual foi a minha última frase naquela noite:
“Alberto, eu odeio desafios!”.
É engraçado lembrar como as opiniões de um
adolescente mudam em uma noite. Na verdade... As opiniões de qualquer pessoa
muitas vezes mudam na mesma noite.
Hoje? Ah... Amanda, você sabe que eu adoro
desafios. Aquelas minhas palavras no fim da noite foram totalmente
influenciadas. Por quem?
Marina.
Eram 23h54, 10 de julho de 2008.
Três minutos antes de Marina passar por
mim. Eu ainda lembro como se fosse há cinco segundos...
Eu virei para Alberto e disse:
- Já é quase dia 11.
E ele me respondeu com aquela cara de “o
que você disse?” que só o Alberto sabe fazer.
- Ainda é dia nove, quase dia 10. Tá
querendo adiantar um dia de vida?
E eu respondi a Alberto com aquela cara de
“sério?” que só eu sei fazer.
- Um dia a mais, um dia a menos... Que
diferença faria?
Ainda era dia 9, pelo menos por mais
alguns minutos.
Às 23h57, eu cheguei à conclusão de que
deveria ir embora; afinal, faziam apenas três minutos que eu havia olhado o
relógio e pareciam trinta.
Então alguém apertou o slow motion e trinta segundos depois eu
dei um tapinha no ombro de Alberto e parti em direção àquela flor... Qual era
mesmo o nome daquela flor no cabelo dela?
Meia noite, 10 de julho de 2008. Eu chamei
a atenção dela, tentei segurar sua mão. Obviamente, ela puxou a mão bem rápido, eu já
previa isso. Ela virou o rosto para mim. E me encarou nos olhos, durante... sei
lá quantos segundos foram. Mas aqueles segundos me fizeram acreditar, mais
ainda, que ela havia nascido para mim.
Eu olhei para ela e disse:
- Teus olhos são tão lindos.
E ela virou para mim e disse:
- Todo mundo me diz isso.
Meia noite e cinco minutos de 10 de julho
de 2008. Marina me deu as costas e partiu. Meia noite e meia, eu pilotava a
moto; 15 anos e eu não tinha carteira. Claro. Mas meu pai liberava às vezes. Era só ir pelos
caminhos certos, nunca dei de cara com polícia. Alberto atrás, ele não colocou
nenhuma objeção em ir para casa naquela hora.
Nem se colocasse. Não havia nada a dizer.
Não havia nada a fazer. Partir. A palavra ecoava. Vazia. Sem vontade. Partir. E
parti, mesmo sentindo que o mais importante eu deixava.
Continuamos a nossa viagem de moto.
Insegura na visão de alguns. O que quer que seja na visão de outros. Só
palavras e julgamentos e eu não queria me julgar naquele momento. Sabe por quê?
Os próximos minutos foram daqueles que te marcam. Marcam a sua vida
inteira.
Chego até a sentir ecoar 10 anos depois
quando se escreve uma carta a uma grande amiga. Amanda, tento te dizer tudo,
porque sei que Alberto não entendeu. Ele estava muito à frente de tudo. Acho
que não entendia sentimentos infantis. Desses bobos que a gente se entrega e
pensa: “tudo pode acabar agora... Nada importa... Pois sou feliz e tudo eu
tenho. O mundo é meu. E todo sentimento é reflexo de mim. Ecoando no universo”.
Eu olho no retrovisor, vem outra moto a
toda velocidade, e me ultrapassa. Tão certo quanto tudo o mais... A minha moto
nunca acompanharia aquela. Na frente, um cara alto e forte. Atrás, uma garota
de vestido amarelo.
O vento batia forte no vestido. E o mundo
girou mais lentamente, embora nenhum físico ou astrônomo reconhecido tenha
percebido. Mas naquele instante eu sabia que algo iria acontecer.
A ultrapassagem foi pela direita
adicionada de um corte imprudente para a esquerda, sem
sinal nem nada. Ultrapassagem numa curva... Bem esperto, não? E sim. Era uma
curva. Daquelas que não se pode ver se vem outro carro na outra mão. As chances
de vir, é claro... Mínimas... Ou você achou que
viria, Amanda?
Esperta você... Pois é... Vinha. Um
caminhão enorme. O caminhão passou por cima e não sobrou moto, nem cara alto,
nem menina do vestido amarelo. Eu fiz a curva. Tranquilo.
Marina está morta.
A moto reduziu a velocidade
gradativamente... Até que Alberto bate em meu ombro dizendo:
- Tá acordado, cara?
Eu não sei o que passava diante dos meus
olhos. Vez ou outra eu me perdia no que pensava. Perdia a linha enquanto via
qualquer coisa. Talvez o automatismo no dirigir, pois mesmo jovem já era
habitual.
Mas era só para me enganar. Faltava ela, Amanda.
Ela era a pior dentre todos os seres que conheci. Sem pena ou dó de minha pobre
existência, ela roubou cada um dos meus dias ao roubar meu coração. Sabe o
pior? Eu a agradecia... Pensava em toda sua pureza impura que me corrompia. Eu
ansiava por mais um segundo com ela. Diria as palavras certas e a faria me
amar. Como nunca amou.
Como nunca amei.
Por que nunca amei, Amanda? Por que nunca
pude me entregar a ninguém como a ela? E naquela moto o homem com ela cheirava
a competição. Que eu perdi. Eu sempre perco antes de concorrer. Foi sempre assim. Eu pisco os olhos e volto à
realidade. E percebo que toda aquela cena que eu vi em minha cabeça foi uma
tentativa de me fazer acreditar que Marina estava morta para mim.
Bom, foi uma tentativa bem inútil.
Ainda restavam 23 horas e 30 minutos desse
10 de julho de 2008. Que eu pensei que já tivesse acabado. O dia 10 continuava.
Eu queria ver Marina uma vez mais. Adriano uma vez me disse:
- Coração é terra que ninguém pisa...
Eu nunca o ouvi.
Corri. E fui me entregar...
Queria que aquele dia 10 nunca mais
terminasse. Eu pensava: “Assim Marina estará sempre em mim”. Eu adormeci,
Marina permaneceu até em meus sonhos. Acordei cedo: eram 8h de 10 de julho de
2008. Ao sair do quarto, notei as caixas de papelão na sala. Havíamos nos
mudado há pouquíssimo tempo. Por causa do emprego do meu pai, passávamos, às
vezes, apenas um mês na mesma cidade. Eu nunca entendi aquilo. No começo, eu
não gostava, porém me acostumei. Estranho. Eu não lembrava daquelas caixas de
papelão ali no dia anterior. Pensei que já havíamos terminado toda a mudança.
Eu estava só em casa, meus pais haviam
saído cedo. Tomei café, resolvi ir à praia. Eu gostava daquela cidade que tinha
uma praia tão perto de casa. Mas eu estava ali há tão pouco tempo, que nem
lembrava o nome da cidade direito; às vezes eu a esquecia ou confundia com
alguma outra onde eu havia morado.
Cheguei à praia às 8h30. Sabe quem estava lá?
Sim. Marina. O que aconteceu? Eu me lembro
da primeira frase que falei, desculpa para puxar papo, para sentar do lado
dela.
- O mar é mesmo muito lindo.
Alguns segundos depois, eu pensei: “Já sei o que ela vai dizer: ‘Todo mundo
me diz isso’”.
Mas ela não disse. Ela disse:
- Verdade.
E sorriu.
Ah, eu não vou entrar em detalhes... Eu
sentei ao lado dela, disse alguma coisa, ela respondeu alguma outra coisa.
Conversa vai, conversa vem, eu acho que ela nem lembrava que eu havia falado
com ela na noite anterior. Também... quantos garotos será que falaram com ela
na noite anterior? Não me admira ela não lembrar o meu rosto. Aliás, melhor
assim. Mas naquele dia... Ah, naquele dia eu era o único... Eu não lembro o que
eu disse dessa vez. Mas ela sorriu de novo. Eu não consigo esquecer aquele
sorriso.
Eu a beijei.
Ela me beijou.
Marina.
Slow
motion.
E naquele momento eu percebi que toda a
minha vida tinha valido a pena. Que eu poderia morrer naquele momento, sem me
arrepender de nada do que havia feito até então. Tudo por aquele momento.
Era hora do almoço e nos despedimos. Ela
sorriu, foi almoçar em casa e eu também.
Combinamos de nos encontrarmos no dia seguinte, naquele mesmo local, naquele
mesmo horário. Eu cheguei em casa, cara de “garoto mais feliz do mundo”. Havia
bem mais caixas em casa. Estranho.
Minha mãe não fez almoço: mais estranho
ainda. Havia umas marmitas na mesa. Ela me viu e me
contou algo perfeitamente normal – eu já estava acostumado.
- Filho, vamos nos mudar hoje ainda. Você
sabe como é o trabalho do seu pai... Coma uma marmita. Eu não tive tempo de
fazer almoço. Arrume suas coisas logo.
Marina. Ecoava em minha cabeça.
Então, eu acordei pra realidade.
- Mãe, vamos nos mudar hoje?
- Sim. Vamos, filho.
Eu corri. Minha mãe gritou algo. Eu não
escutei. Eu corri pra praia.
Ela não estava lá.
Eu perguntei às pessoas ao redor, ninguém sabia,
ninguém tinha visto. Eu corri desesperado por todos os lugares da
cidade. Nada. Eram 18h, 10 de julho de 2008.
Voltei para casa me arrastando. Nenhum
sinal de Marina. Levei uma bronca horrível dos meus pais. Eu não lembro
nada do que eles disseram. A minha cabeça ia explodir. Ela não conseguia
processar a informação de que eu nunca mais veria Marina.
Poucas horas depois, entrei no carro,
fomos embora. Nem lembro em qual cidade eu morei depois dessa, mas foi pouco tempo também. Nem me lembro de mais nada.
Depois desse dia, eu vivi uns anos sem
viver. Eu esqueci completamente o nome da cidade onde eu havia conhecido
Marina. Na verdade, eu me esforcei para esquecer. Eu sabia que eu não podia
voltar lá. No final, eu queira que fosse apenas uma lembrança. Um sonho.
Marina... Ela não existiu de verdade. Foi
só um sonho.
Não foi?
O tempo passou. Ele não apaga as feridas,
mas cicatriza. E eu consegui levar uma vida normal. Eu conheci você, Amanda...
Mas sabe o que aconteceu?
Ontem eu precisei viajar. Pois é, acabei
me acostumando e fui trabalhar com meu pai. Graças a Deus, hoje em dia eu
preciso viajar bem menos que ele naquela época.
Hoje estou aqui, na praia. São 8h20. Estou
te escrevendo essa carta, explicando por que eu não vou voltar. Por causa de 10
de julho de 2008. Porque ontem eu resolvi
dar um pulinho na praia dessa cidade.
Eu lembrei. Foi aqui. Eu tenho certeza.
Foi aqui onde eu sonhei com Marina.
10 de Julho de 2008.
Não me pergunte como, mas eu sabia. Eu
pedi demissão ontem mesmo. E hoje de manhã resolvi te escrever essa carta.
“Querida Amanda, me desculpe, eu não vou voltar. Mande lembranças a Jeff, um
grande abraço para Cadu. Deixe-me contá-la. Era um simples 10 de julho do
ano de 2008. O dia fatídico. Tudo mudou. Os crepúsculos e as luas cheias nunca
mais foram as mesmas”.
Eu vou ficar por aqui. Eu vou arriscar
tornar aquele sonho realidade. Por menor que sejam as chances. Eu sei, eu tenho
certeza. Eu vou encontrar Marina.
Terminei. Guardo a carta no envelope.
Ponho dentro da minha mochila e olho pro mar. Tem uma garota olhando pro mar
também, sentada na areia. Tem uma flor no cabelo dela... Qual era mesmo o nome
dessa flor? Eu sentei do lado dela. Precisava dizer algo para puxar papo.
- O mar é mesmo muito lindo.
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